A insistência com que os municípios exigem ISSQN sobre locação de bens gradativamente vem perdendo fôlego na medida em que as decisões judiciais vão pondo as coisas nos seus devidos trilhos. Locação de bens próprios não é serviço, não é obrigação de fazer, daí que as receitas daí auferidas não são nem devem ser oferecidas à tributação municipal. Como ao longo de anos e anos os contribuintes tiveram de se sujeitar às cobranças, gradativamente os cofres públicos vão sendo judicialmente obrigados a se abrir para devolver o que não lhes pertencia.
Mas parece que a longa gestação do passivo tributário às avessas criou um problema que desafiou solução no mínimo curiosa, verdadeiro monstrengo jurídico que se origina de decisão proferida no Resp nº 1.131.476/RS (2009/0059347-3), cuja relatoria coube ao Ministro Res. Luiz Fux: em resumo, a decisão diz que sim, o município cobrou e recebeu o que não lhe era devido, mas só terá de devolver o indébito se o contribuinte provar que não repassou ao tomador da locação o ônus do ISSQN, imposto transformado, do nada, em tributo indireto.
Analisar o tamanho do absurdo desta decisão exige rememorar alguns conceitos elementares.
Diz uma máxima comezinha de Direito que a prova de fato cabe de fazer a quem o alega. Este mandamento decorre de uma constatação tão comezinha quanto a esta máxima: não é possível provar o não fato, ou, por outra, não há como fazer prova negativa.
Outra evidência, esta ligada ao Direito Tributário, diz que tributo direto é aquele em que o próprio sujeito passivo o calcula e paga, como acontece com o PIS, COFINS, IR, CSL etc. Indireto, por sua vez, é o tributo em que o sujeito passivo é um, mas quem o paga é outro, o contribuinte de fato. É o que acontece com o ICMS, em que o contribuinte de direito é supermercadista, mas o contribuinte de fato, ou quem paga o imposto embutido no preço da mercadoria, é o consumidor. O mesmo ocorre com o IPI.
Mas consta, na decisão referida, o seguinte trecho:
“O ISS, como de sabença, é espécie tributária que admite a sua dicotomização como tributo direto ou indireto, consoante o caso concreto. In casu, a pretensão repetitória da ora recorrente consiste em reaver valores indevidamente recolhidos a título de ISS incidente sobre a locação de bens móveis (cilindros, máquinas e equipamentos utilizados para acondicionamento dos gases vendidos), hipótese em que o tributo assume natureza indireta. Apresenta-se com essa característica porque o contribuinte real é o consumidor (locador) da mercadoria objeto da operação (contribuinte de fato) e a empresa (contribuinte de direito) repassa, no preço da locação do bem, o imposto devido, recolhendo posteriormente aos cofres públicos o imposto já pago pelo “consumidor” de seus produtos ou serviços. Não assume, portanto, a carga tributária resultante dessa incidência”.
A primeira pergunta que se faz decorre da afirmação segundo a qual “o ISS incidente sobre a locação de bens móveis (…) assume natureza indireta” – natureza indireta com base em quê, exatamente? A resposta o sr. Ministro dá logo adiante: “assume esta característica porque (…) a empresa repassa, no preço da locação do bem, o imposto devido”. Se a resposta à questão proposta é esta, cabe então perguntar que imposto não é repassado! O PIS e a COFINS, e também o IR, e ainda a CSL seriam, então, também tributos indiretos?
Bem, o fato é que, transformado a fórceps em tributo indireto, tal como o ICMS e o IPI, agora também o ISSQN depende de prova do não repasse do ônus tributário a terceiros, por conta do art. 166 do CTN, dispositivo que, ao exigir autorização de terceiro como pré-condição para repetição do indébito, conforme já observou Sacha Calmon Navarro Coelho, faz inoportuna, abusiva e incompreensível intervenção do Poder Público na seara privada.
Mas, voltando ao ponto. Suponha que o ISSQN seja, de fato, tributo indireto, e responda: como, por Júpiter, o contribuinte vai provar que “não repassou” o seu ônus a terceiro? Com todo respeito que merece o sr. Ministro Luiz Fux, como não considerar a exigência de prova de fato negativo como justificativa para não devolver nunca o tributo a quem, comprovadamente, o recolheu indevidamente? Como não entrever, ali, uma desculpa esfarrapada travestida de inverossímil justificativa jurídica para permitir o obsceno locupletamento do ente público?
Há casos de tributo direto, como o IPTU, por exemplo, que, por contrato – na locação de imóveis isso se tornou relativamente comum – o locador, real sujeito passivo do tributo, transfere ao locatário sua repercussão econômico-tributária, embutindo-o no preço do aluguel. Mas se o locador buscasse a repetição de indébito de IPTU do imóvel locado junto ao Município, caberia a este último a argüição de ilegitimidade ativa daquele, provando haver no contrato negociação do repasse do ônus tributário ao locatário. Ou, por outra: fatos, provam-se-os; não fatos, não há como!
Tel.: (31) 3658-5761
Email: bernardesefaria@bernardesefaria.com.br
Av. Prof. Mário Werneck, 1895/601
Buritis – CEP: 30455-610
Belo Horizonte (MG)