Segundo o velho argumento brandido pela União às vésperas de grandes derrotas no campo tributário, “as fixações de entendimento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) não podem criar um forte desequilíbrio fiscal”. Esta frase voltou a ser repetida nos últimos dias, em que é iminente a derrota da União pelo gravíssimo erro de incluir o ICMS na base de cálculo das contribuições Pis e Cofins, e mostra a diferença entre como pensam, argumentam e lutam o Estado, de um lado, e o contribuinte, de outro.
É que, para o contribuinte, o que as decisões do STF não podem criar é coisa diversa, como a ilusão de que um erro repetido ao longo dos anos poderia transformar-se em acerto; ou de que a tunga explícita poderia ser sacramentada como técnica arrecadatória nos casos em que a correta aplicação da lei significasse perda arrecadatória etc. Enfim, o que as fixações de entendimento do STF não podem criar é a impressão de que, às vezes, inconstitucionalidades e ilegalidades podem prevalecer quando a aplicação correta da Constituição Federal e da lei puder trazer diminuição da carga tributária.
As notícias que se lêem e ouvem a respeito da iminente decisão que garantirá a retirada do ICMS das bases de cálculo de Pis e de Cofins, grotesca distorção que a União impõe aos contribuintes há anos, são mostras de que a União, na busca de seus interesses arrecadatórios, não tem vergonha em assumir a simplicidade de seus argumentos e métodos: as folhas agora noticiam que o Ministro da Fazenda, Guido Mantega, visitou a presidente do STF, Ministra Ellen Gracie, para “expressar preocupação” com a repercussão financeira da decisão.
Expressar preocupação como, sr. Ministro? Ora, quer-nos parecer que discussões desse porte, uma vez começadas, têm campo próprio para se desenvolver e solucionar, que são as barras dos tribunais, e se o livre trânsito das autoridades entre os Poderes dá-lhes a impressão de que todo e qualquer assunto pode ser tratado entre elas, é hora de rever alguns pressupostos. A interferência é indevida, sim, porque o Poder Executivo não tem por que se imiscuir nas decisões do Poder Judiciário tentando reverter quadros decisórios ainda em andamento. Se os procuradores da União não derem conta do recado, é o caso de buscar as razões nas competências de seus quadros ou então na rudeza das inconstitucionalidades e ilegalidades que, por dever de ofício, acabam por ter de defender a qualquer custo. Se porventura prevalece a lei e a ordem, culpa alguma lhes pode ser atribuída.
Não, sr. Ministro da Fazenda, mantenha a compostura e, em vez de dirigir-se à sra. Ministra do Supremo Tribunal Federal para expressar “sua preocupação” com a perda de arrecadação de Pis e Cofins que a decisão trará com a retirada do ICMS em suas bases de cálculo, expresse com o Presidente da República sua preocupação com os rumos do Estado brasileiro, que institucionalizou, no campo tributário, a “Lei de Gérson”, a defesa da “coerência” que garante a arrecadação artificialmente inchada, a manutenção de decisões que veiculam visões erradas da realidade fiscal etc.
O Ministro Mantega deve deixar o lobby para o procurador-geral da Fazenda Nacional, que já anunciou até um “convênio” com os procuradores estaduais, para que estes entreguem aos ministros do STF “memoriais” com as suas próprias preocupações acerca do que a decisão favorável aos contribuintes trará. Só é preciso conferir como é que os procuradores estaduais vão demonstrar o seu interesse no caso e que “preocupações” pretendem demonstrar aos Ministros do STF, pois aos fiscos estaduais a decisão acerca do ICMS na base de cálculo de Pis e Cofins em nada afeta a sua arrecadação.
O fato é que qualquer conhecedor mediano das técnicas elementares de apuração tributária sabe que no preço de mercadorias tributadas de ICMS está embutido o imposto, o que faz com que parte do valor recebido pela mercadoria, obviamente, pertence ao fisco estadual, não ao comerciante. Se a União, ao tributar o comerciante, não admite que ele subtraia da base de cálculo de seus tributos aquele ICMS, submete-o à injusta, inconstitucional e ilegal tributação de imposto estadual. É isto, nada mais, que significa manter o ICMS na base de cálculo de Pis e de Cofins: pagar tributo federal sobre imposto estadual.
O que é surpreendente é a União nem se dar ao trabalho de defender ponto de vista contrário, ou seja, não se presta a demonstrar e provar que seja legal e constitucional tributar o ICMS de Pis e Cofins; ela limita-se a exigir continuar tributando simplesmente “porque sempre foi assim”, ou “porque o Superior Tribunal de Justiça já firmou este entendimento”, ou porque “esta não é uma questão constitucional” – no fundo porque sabe que contra fatos não há argumentos.
Quanto ao argumento de que é preciso manter a “coerência de decisões anteriores”, brandido como se o Direito e a sociedade não fossem dinâmicos e carecessem sempre de atualização, resultado do confronto de idéias, é preciso reler como o ex-Ministro Paulo Brossard, no julgamento do RE 140.616-DF, de que foi Relator, concluiu seu voto em sessão de 27/08/1992:
“Convencido do desacerto dos meus votos anteriores na Segunda Turma, conheço do RE e lhe dou provimento para denegar a segurança concedida pelo STJ. Lamento que os recorridos tenham essa sorte quando outros obtiveram êxito, inclusive com meu voto; mas não posso votar de outra maneira, permanecendo na posição que me parece menos acertada por amor a uma mal entendida coerência, a coerência no erro, ou pelo pudor de confessá-lo. Já que não posso eximir-me do erro, não quero e não posso deixar de corrigi-lo toda vez que convencido de que nele incidi.” (RTJ 145/944).
Coerência, como se vê, é sinal de compromisso com o Estado de Direito, que é o que deve prevalecer, por mais rudes que sejam as armas do poder de ocasião.
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