De tempos em tempos é preciso revisitar antigos ensinamentos e buscar as motivações, as essências, as esquecidas razões de ser de certos dispositivos legais existentes no ordenamento jurídico nacional, especialmente nesta época em que as pessoas confundem palavrório estéril com erudição, jurisprudência tola com “prevalência do bom senso”, exibicionismo inútil com abalizada ponderação. Na medida em que nos distanciamos da realidade e baseamos a vivência jurídica em convicções pessoais defensáveis apenas em discursos movidos a indignação, perdemos contato com o simples e nos esquecemos da lição basilar segundo a qual uma vez compreendido o porquê de uma coisa ter sido instituída de determinada forma, tudo torna-se coerente e claro.
Impressiona a quantidade de decisões judiciais em que se defere o redirecionamento para os sócios a Execução Fiscal ajuizada em face da pessoa jurídica de que fazem parte. É de estarrecer constatar que os pedidos são feitos pelos procuradores sem justificativa alguma, ou com base em irrelevâncias nada jurídicas, e pior, têm sido deferidas pelos juízes sem a menor cerimônia, e igualmente sem justificativas legais. Não é raro que as procuradorias não juntem aos pedidos a mais mínima das provas exigidas pelo art. 135 do CTN, inaugurando com o deferimento um diálogo de surdos em que os sócios é que passam a ter a obrigação de provar que não agiram dolosa nem culposamente para a formação do crédito tributário exigido da pessoa jurídica de que fazem parte.
Ao argumento dos sócios, por exemplo, de que não podem ser exigidos de débito para o qual não teriam concorrido, não raro se ouve que “isto é questão de prova só analisável por meio dos Embargos à Execução”. Esta resposta, além de ser cruelmente insensível ao desconsiderar que para embargar os sócios sofrem prévia constrição patrimonial, joga nas costas destes o dever de fazer prova negativa, ou seja, “provar que não cometeram” nenhum ilícito, ou “provar que não contraíram” o débito, enfim. A obrigação de provar que teria havido maracutaia, no entanto, como fundamento do pedido de redirecionamento, é da Fazenda, e é o CTN que assim o exige.
A discussão que se inaugura com o redirecionamento da Execução Fiscal para a pessoa dos sócios, porém, levanta mil questões, começando com a verificação da natureza jurídica da exceção de pré-executividade; se esta é criação doutrinária aceita judicialmente por um capricho dos juízes modernos ou se é apenas uma defesa indireta de mérito a que se deu status e título pomposo por um incompreensível acidente; se o simples não pagamento de tributos já não seria o tal ilícito a que se refere o CTN; se o encerramento irregular da sociedade seria ou não motivo suficiente para o redirecionamento; se é possível ou não aos sócios fazer prova negativa de suposta conduta ilícita; se a prova que cabe à Fazenda juntar à execução para redirecioná-la deve ou não ser pré-constituída etc.
Inicia-se, enfim, uma infindável discussão que termina de modo melancolicamente igual no SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: só se pode responsabilizar os sócios por débitos da pessoa jurídica quando estes concorreram subjetivamente para a constituição do débito – exatamente como estabelece o CTN. Decisão simples, eficaz, mas que até ser proferida consome rios de dinheiro, milhares de horas de trabalho, quilos de papel, dúzias de ansiolíticos e infindáveis noites de sono.
E por que rever lições basilares de faculdade e buscar as motivações do art. 135 do CTN ajudariam a quebrar este ciclo vicioso? Porque isto esclareceria que a origem daquela exigência, que não está no CTN para proteger o sócio espertalhão nem para dificultar a vida dos procuradores das Fazendas, é proteger a livre iniciativa, é garantir ao cidadão honesto o direito de empreender seu negócio dentro de uma clara margem de risco, direitos que a Constituição Federal garante ao nacional.
Trata-se, em outras palavras, de uma limitação ao poder imperial do Estado, para que o particular não seja obrigado a custear com o patrimônio pessoal obrigações que tenham ido além do capital com que guarneceu o seu empreendimento para arriscar-se no incerto mundo dos negócios. Acidentes acontecem; é justo que se busque limitar o estrago.
Se se tornar mesmo tão simples desconsiderar a personalidade jurídica do empreendimento para arrancar do particular por vezes o patrimônio de uma vida inteira, dentro de pouco tempo raras pessoas vão arriscar-se a separar uma parte do próprio patrimônio para constituir uma empresa, pois não é razoável esperar que alguém com um mínimo de bom senso aceite apostar 100 hoje sabendo que pode ter de pagar 1.000 amanhã por causa da interpretação leviana e superficial das mesmas leis que eram claras a todos na época da constituição do negócio.
É preciso que os maus empreendedores paguem por seus ilícitos, que os estelionatários que erguem empresas de fachada para prejudicar terceiros, dentre eles a sociedade e o Fisco, sejam devidamente apenados, mas dentro da lei e nunca à custa de direitos dos bons empreendedores.
Do jeito que as coisas vão caminhando, dentro em pouco a luta contra os carrapatos vai matar é o cachorro.
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