Os precatórios, ou débitos reconhecidos judicialmente de dívidas dos Municípios, Estados, Distrito Federal ou da União, são de pagamento obrigatório e incondicionado depois de cumprir o ritual a eles constitucionalmente determinado, dentre eles entrar no orçamento das respectivas esferas públicas. Trata-se de decisões judiciais das quais não cabe recurso e são oponíveis ao Estado, ou seja, são concretizações do direito subjetivo público de guarida constitucional, previsto no inciso 36 do art. 5º. No Brasil, porém, as coisas se relativizam com lamentável freqüência.
Como quem não quer nada, vão aparecendo aqui e ali empecilhos de toda ordem ao pagamento dos precatórios, como adiamentos, parcelamentos, moratória pura e simples, que sempre têm raiz no notório vezo dos administradores de plantão de adiar o quanto podem o dever de cumprir suas obrigações. Quando é para cobrar, são rápidos e certeiros; para pagar, porém, o discurso é outro.
O legislador federal, em 2004, editou a Lei nº 10.033 e, por meio do art. 19, instituiu um empecilho que não se diferenciava muito dos pré-existentes no que tinha de óbvio – criar o máximo possível de obstáculos ao pagamento das dívidas reconhecidas judicialmente – mas instituiu um obstáculo aparentemente intransponível: exigia que o credor se habilitasse a receber o precatório provando que nada devia de tributos federais, estaduais, municipais, assim como nada devia ao FGTS, nem tinha lançada Dívida Ativa da União nem débitos junto ao INSS. E mais: mesmo de posse do precatório e havendo provado estar apto a receber o que o Estado lhe deve ainda tinha de aguardar a manifestação da senhora Fazenda Pública, que é quem ia ter a palavra final sobre o assunto.
Em outras palavras, o dispositivo legal transformou o que é decisão judicial transitada em julgado, consistente na conferência ao cidadão de direito subjetivo público, portanto incondicionadamente oponível ao Estado, em mera sugestão ao Poder Público : algo como um “se puder me fazer o favor, pague-me depois de a Fazenda dizer se é oportuno e conveniente”.
Assim, o legislador se esqueceu do óbvio ao parir a aberração que é o dispositivo da Lei nº 10.033/2004: decisão judicial não se discute, cumpre-se. Se o cidadão tem em mãos uma decisão transitada em julgado, não há quem lhe possa impedir o exercício do direito nela garantido, nem impor condições, menos ainda determinar o que é conveniente ou oportuno de ser cumprido. Mais do que óbvia constatação, esta premissa está lançada na Constituição Federal, e seu espezinhamento é apenas mais uma pequena amostra de como vem crescendo o Estado-leviatã.
O STF, porém, acionado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), decretou a inconstitucionalidade do dispositivo, argumentando que o art. 100 da Constituição Federal não contém nada que permita ao Poder Público instituir condições prévias para o creditamento ou pagamento de precatórios, além do que, como é óbvio, o cidadão não pode ter o cumprimento de decisões judiciais condicionadas por lei.
O que se colhe do episódio é uma dupla lição, duplamente alvissareira: a primeira é a de que o Poder Judiciário, especialmente o STF, guardião-mor da Constituição Federal, está atento a todo e qualquer movimento estatal que vise a limitar direitos e cercear garantias do cidadão, bastando, para tanto, que seja acionado pelos meios devidos; a segunda, conseqüência da primeira, é a de que o cidadão que se indigna com os absurdos de que é vítima vem encontrando no Poder Judiciário um aliado e tanto na defesa de seus direitos. As últimas decisões proferidas pelo STF são provas disso.
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