O art. 31 da Lei nº 8.212/91 permite que contribuintes honestos sejam transformados em presas fáceis para os auditores fiscais do INSS. Com base neste dispositivo, e a partir do aparente descumprimento do que seria mera obrigação acessória, os fiscais caracterizam contra o contribuinte uma situação de fato que o deixa sem ter como fugir de um problema de proporções desastrosas: ele é obrigado a pagar do próprio bolso contribuições previdenciárias de terceiro que nem são devidas. A situação é a seguinte.
Os prestadores de serviço que o fazem na modalidade cessão de mão-de-obra devem fazer folhas de pagamento separadas para cada tomador de serviços. O tomador de serviços, por seu turno, deve reter 11% do valor das notas fiscais a título de contribuições previdenciárias. O valor que é retido pelo tomador é compensado pelo prestador na hora de recolher as contribuições devidas sobre a própria folha de pagamentos.
A intenção do legislador ao instituir estas obrigações acessórias para cedente e cessionário de mão-de-obra foi garantir rastreabilidade a este tipo de prestação de serviços para evitar sonegação de contribuições previdenciárias devidas sobre a remuneração dos empregados que, sendo empregados de um contribuinte, trabalham no estabelecimento de outro. O corolário da medida é a solidariedade instituída para ambos os contribuintes, permitindo que de um ou de outro possam ser exigidas as contribuições previdenciárias.
O problema começa com a interpretação dos fiscais, para quem qualquer situação em que o trabalhador de uma empresa se desloca para outra é entendida como cessão de mão-de-obra nos termos da Lei nº 8.212/91. Não há o que lhes faça compreender que a cessão de mão-de-obra a que a lei se refere é a que pressupõe disponibilidade de trabalhadores continuamente a serviço do tomador recebendo ordens dele, como em serviços de limpeza, conservação, zeladoria, vigilância, segurança, como se dá com empreiteiros, com trabalhadores temporários contratados na forma da Lei nº 6.019/74 etc.
Analisemos, por exemplo, um contrato de prestação mensal de serviços de manutenção de equipamentos diversos, como aparelhos de ar condicionado. Óbvio que nem prestador nem tomador vai se dar ao trabalho de, preventivamente, cumprir, para este tipo de contrato, as obrigações acessórias instituídas pela Lei nº 8.212/91, pois não se trata de prestação de serviço com cessão de mão-de-obra, ou seja, é prestação de serviços de manutenção em que o empregado do prestador que se desloca para o estabelecimento do tomador não está à disposição do contratante, pois é do contratado que recebe ordens, é do prestador de serviços que está à disposição.
Não é, porém, o que concluem os auditores fiscais. O só fato de a prestadora ter de deslocar trabalhadores até o estabelecimento da tomadora para que façam o serviço já dá aos fiscais o direito de inserir esta prestação na modalidade cessão de mão-de-obra e, com base nisso, de autuar o tomador pela inexistência da retenção dos valores.
Achou o problema grave? Pois não é nada que não possa piorar: ultrapassada a impropriedade da classificação do serviço como cessão de mão-de-obra, não adianta ao cessionário provar que o cedente já pagou as contribuições previdenciárias de seus empregados a tempo e modo, pois os fiscais se escudam na Lei nº 8.212/91 para dizer que só aceitam desconstituir a multa se o autuado provar que reteve o valor. Como não houve retenção da contribuição previdenciária, os fiscais “concluem” que ela não foi recolhida.
Interessante observar que a Lei nº 8.212/91 não comina com pena de multa o prestador que deixa de fazer folhas de pagamento separadas, da mesma forma que não há notícia de multa para o simples deixar de reter os 11% sobre o valor das notas fiscais. Em outras palavras, o descumprir obrigações acessórias, especificamente, não é apenado.
Este emaranhado de dispositivos legais maldosos, fatos armados pela dinâmica dos mercados, voracidade fiscal da autarquia e interpretações disparatadas dos fiscais exigem um verdadeiro exercício de criatividade por parte do autuado para tentar entender o porquê de não adiantar provar que o que é exigido no Auto de Infração já foi entregue à Previdência Social: ao que parece, é apenas porque é muito mais vantajoso – e literalmente enriquecedor, ainda que ilicitamente – exigir de novo contribuições sociais, agora calculadas à alíquota de 40% sobre o valor das notas fiscais, do que reconhecer que a lei é defeituosa e que, da forma com que permite que os fiscais ajam, os bons contribuintes são apenados no lugar dos maus.
As decisões administrativas prolatadas em recursos dos contribuintes versando autuações desta natureza dão engulhos no mais pervertido dos juristas. Nelas se afirma, às claras, que os fiscais autuam porque a Lei nº 8.212/91 permite que autuem, não porque vêem que os valores foram sonegados – mesmo porque costuma haver prova contrária.
É interessante observar, aliás, que os fiscais não costumam se deslocar até o prestador para autuá-lo por deixar de fazer folhas de pagamentos separadas por tomador, ou por deixar de destacar os 11% nas notas fiscais que emite, só autua o tomador que deixa de reter os valores. Quando se percebe que o passo seguinte à autuação é não admitir que o autuado prove que o prestador recolheu as contribuições, concluir pela má-fé dos operadores da armadilha é apenas um passo.
Os autuados argumentam que é no mínimo imoral que lhes seja exigido pagamento de contribuições previdenciárias em havendo provas de que estas já foram pagas por quem as deve, ainda mais quando não conseguem ser ouvidos num episódio lamentável em que se misturam interpretação equivocada da lei, descumprimento de obrigação que não lhes diz respeito e descarte liminar da prova que lhes cabe fazer do único fato que realmente importa, ou seja, de que não houve sonegação alguma de contribuições previdenciárias. Os auditores fiscais, no entanto, só vêem imoralidade no deixar de cumprir a Lei nº 8.212/91, ou seja, acham que só é imoral deixar de exigir o que a lei lhes faculta exigir.
Daí a conclusão a que chegam os contribuintes hoje em dia num país que parece achar que a solução para tudo é a edição de mais leis, não a educação moral e cívica de seus súditos: pior do que um país em que as leis não são cumpridas é o país em que a lei é cumprida não para punir os maus, mas para conseguir vantagens sobre contribuintes honestos e de boa-fé com base em interpretações espertas e oportunistas de leis defeituosas.
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