Em artigo publicado neste espaço em 04/03/2008, chamamos a atenção para um aspecto que tem passado ao largo da análise dos juristas que se debruçam sobre a proposta governista de reforma tributária. Tratamos então da tentativa de desaforamento do cerne da não cumulatividade do ICMS, que, na proposta, deixaria de ser tema constitucional para ser tema de lei, a mesma que trata da instituição do regime jurídico de compensação (Lei Complementar nº 87/96, a “Lei Kandir”).
Comentamos que a mudança proposta não era pequena, e que “a proposta mantém em lei federal a espinha dorsal do regime jurídico da compensação de créditos de ICMS, mas planeja levar para lá também a própria definição do que é a não cumulatividade do imposto”.
É óbvio que o contribuinte só tem a perder com a mudança, pois, se como está hoje os Estados usam de todas as artimanhas para escamotear o princípio da não cumulatividade ínsito ao ICMS – no que vem sendo batido nos Tribunais pela insurgência dos contribuintes -, o que dirá quando este princípio deixar de ser direito subjetivo público protegido pela Constituição Federal e passar a ser mero dispositivo legal, mutável a golpes de medidas provisórias.
Lançada esta primeira questão elementar, analisamos agora outro aspecto danoso aos contribuintes, contido na mesma proposta de reforma tributária. Se o artigo anterior focava dispositivo que seria tirado da Constituição para virar tema de lei, hoje comentaremos algo que está em vias de ser incluído na Constituição Federal apenas para dar verniz de legitimidade a algo que não tem paralelo nos países em que o IVA é utilizado: o governo federal prepara-se para incluir na Constituição dispositivo que lhe garante que o IVA faça parte de sua própria base de cálculo, por meio da inclusão do inciso V do § 6º do art. 153.
Faz graça com o assunto o secretário-adjunto de Política Econômica André Paiva, dizendo que o governo age assim “em respeito à segurança jurídica”, pois, embora não haja menção na legislação, “o PIS e a COFINS já fazem o mesmo”. Seria cômico não fosse trágico: um dispositivo grotesco e injusto sendo guindado à Constituição Federal como parâmetro a ser seguido por um governo que se prepara para tomar uma sova histórica no julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, de uma batalha jurídica contra a inclusão do ICMS na base de cálculo da COFINS.
O STF, como é sabido, já deu seis votos pela inconstitucionalidade da base de cálculo da COFINS com o ICMS considerado nela, em julgamento paralisado por um pedido de vista em 2006. Considerar imposto na base de cálculo de imposto significa tributar dinheiro público. Mais do que injusto ou imoral, artifícios desta espécie são apenas prova de desonestidade pura e simples.
É em resposta a esta derrota judicial que o governo federal prepara, na mais perfeita contramão da transparência, mecanismo que lhe garante ocultar de forma acintosa, agora com foro constitucional, o verdadeiro impacto do novo IVA na vida do contribuinte, eliminando de vez o seu direito de descobrir o quanto de imposto está embutido no preço da mercadoria adquirida.
Trata-se de estratagema desonesto para esconder impostos, pois uma mercadoria que custa R$ 100,00 não passa a custar R$ 118,00 quando se acresce a ela o ICMS calculado a 18%, mas a R$ 121,24. O contribuinte que aprende ainda no ensino médio a calcular percentuais demora a compreender a mágica que transforma R$ 118,00 em R$ 121,24, mesmo porque a tabela de alíquotas divulgada pelo governo estadual confirma que a alíquota é mesmo de 18%, a mesma que, na prática, vira 21,24%.
O contribuinte também percebe que, pela manobra que providencia, o governo federal não está interessado nem na transparência do processo nem na divulgação de informações essenciais sobre quanto imposto o contribuinte paga. Para o Poder Público, quanto menos o contribuinte conhecer seus direitos, menos propenso a brigar para defendê-los ele será.
Eis mais uma maldadezinha incluída silenciosa e ardilosamente no bojo de uma reforma tributária na qual o governo promete “simplificação, desoneração e a eliminação das distorções que prejudicam o crescimento das empresas e sua competitividade”, quando faz o contrário, garantindo-se mecanismo de aumento de arrecadação, marcando mais um ponto no placar da falta de transparência e providenciando a resolução de conflitos jurídicos em torno do “jeitinho”, agora em vias de ser constitucionalizado.
Concluímos novamente que ainda há muito o que analisar na proposta de reforma tributária, tema ao qual voltaremos novamente, mas confirma-se o que dissemos antes, ou seja, que “o que quer o governo é manter a arrecadação e garantir-se instrumentos para aumentá-la quando bem entender”.
E ria, se ainda puder: o governo federal tenta incluir na Constituição Federal dispositivo que lhe garante considerar o valor do imposto em sua própria base de cálculo logo na seção seguinte à das “Limitações ao Poder de Tributar”.
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