Ciclicamente ocorre no Brasil uma discussão que costuma ser tão apaixonada e distorcida quanto superficial acerca do déficit da Previdência Social. Juntando-se às outras infindáveis que se travam, como aquela em que se vociferam argumentos sobre adoção ou não da pena de morte no Brasil (que de pior do que a do déficit da Previdência só tem mesmo a total inutilidade), vira e mexe o tal déficit serve de justificativa federal por mais recursos, preenche os discursos de governos oportunistas e ultimamente pauta até especiais de TV.
O que o governo não quer admitir nem discutir – mesmo porque beneficia-se com a desinformação que campeia pelo País acerca deste e de vários outros temas – é que a Previdência Social não é deficitária, mas superavitária. Já tem até candidato à Presidência da República insistindo na divulgação desta evidência, de resto já divulgado até pelo Tribunal de Contas da União, fato que põe a nu a falácia do discurso federal por mais recursos. Quer compreender por quê?
O relatório do Tribunal de Contas da União de 2005 apontou que as receitas vinculadas à Seguridade Social somaram R$ 250,9 bilhões, contra R$ 265,1 bilhões de gastos. Estes números revelam déficit de 5,659% – mas isto é apenas aparente. É que o mesmo TCU que revela estes números ressalva que a receita real seria muito maior se não existisse a Desvinculação das Receitas da União, conhecida pela sigla DRU.
O contribuinte discute a constitucionalidade do desvio destas contribuições sociais feitos por meio da Emenda Constitucional nº 27 há mais de cinco anos. Na hipótese de os recursos previdenciários não sofrerem a influência da DRU, a Seguridade Social apresentaria saldo positivo de R$ 19,1 bilhões, em vez do déficit de R$ 14,1 bilhões. Enquanto o desvio não acaba, defendemos, o contribuinte previdenciário tem todo direito de buscar de volta os 20% que são mensalmente desviados (de PIS, COFINS, CSLL, CPMF, da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamentos etc.), porque, além do desvio que sofrem as contribuições, transformam-se em impostos cobrados sem a lei que lhes dê exigibilidade constitucionalmente defensável.
De fato, se a União resolveu manejar mera emenda constitucional para desviar recursos que seriam da Previdência Social, que o faça, mas seria desejável que, com a mesma insistência com que divulga a necessidade de mais recursos, divulgasse também este lamentável desvio que patrocina há anos a fio, por meio do qual sangra os recursos que deveriam ser usados apenas para custear as despesas com saúde, assistência e previdência sociais. A verdade é que o governo federal exige com uma das mãos e com a outra promove a gatunagem explícita.
A discussão levantada desde aquela época acerca da Emenda Constitucional nº 27 é a seguinte: a lógica cobra um preço caro pelo desvio de contribuições sociais, que são espécies tributárias que devem sua natureza jurídica justamente ao vínculo que têm com a sua destinação, constitucionalmente definida como sendo social. Quando contribuições sociais são desviadas para financiar despesas gerais, transformam-se necessariamente em impostos, assumem a natureza jurídica desta espécie tributária a que se foram juntar. Pense bem: se o que era originalmente arrecadado para custear a previdência social passa a custear cafezinho de deputado, querosene de aviação e salário de professor, é como imposto que o faz, não como contribuição social.
Se o desvio de destinação ocorresse logo na instituição da contribuição social, ou seja, se ocorre já por obra do congressista, não seria esta a espécie do tributo, pois não é o nome que lhe confere natureza jurídica de contribuição social. Se o desvio acontecesse por obra do servidor que a recebesse em pagamento, o desvio seria apenas crime, não mudaria a natureza jurídica do tributo arrecadado. Da forma com que é feito e no momento que se dá o desvio, porém, que é entre a arrecadação, feita a título de contribuição social, e o gasto efetivo, feito para custear despesas pagas por impostos, a novação da natureza jurídica tributária é notória, é indisfarçável e inexorável. De contribuição social a parcela desviada do tributo transforma-se em imposto, imposto novo. Só que para a União exigir impostos a Constituição Federal exige que haja lei, e lei não há para exigir estes novos impostos em que se transformam as parcelas desviadas das contribuições sociais. Daí a discussão.
O fato é que a União prefere cobrar mais, arrecadar mais, exigir mais, do que parar de desviar recursos da Previdência Social, ou melhorar os controles para evitar a outra sangria que os cofres previdenciários sofrem com os roubos – estes, sem disfarce – que ocorrem em todos os rincões do país por ladrões comuns, serventuários desonestos e políticos corruptos.
A alternativa para aumentar e firmar a sustentabilidade do sistema previdenciário – que de tempos em tempos depende, evidentemente, de reformas e novas fontes de custeio, mormente por causa do envelhecimento da população num país em que parece haver uma insuperável carência de novos investimentos – passa necessariamente pelo aumento de arrecadação destinada à previdência social, mas aumento justificado por cálculos atuariais honestos que considerem o necessário aumento do empregos formais. Milhões de empregos formais, aliás abundantemente prometidos de tempos em tempos.
Déficit previdenciário, não.
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