Não é fácil compreender ou contextualizar o Parecer PGFN/CAT nº 1617/2008, produzido pela Coordenação-geral de Assuntos Tributários da Procuradoria-geral da Fazenda Nacional em 1º/08/2008. Seu objeto, a Súmula Vinculante nº 8, é de uma simplicidade franciscana, tem menos de 40 palavras e foi editada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para restabelecer a segurança que tinha sido banida de nosso ordenamento jurídico por normas que, posteriormente à Constituição Federal (CF/88) e contrariando o Código Tributário Nacional (CTN), dispuserem sobre prescrição e decadência tributárias. O parecer, aparentemente profundo, pretensamente erudito e quase vinte vezes maior do que a Súmula que interpreta, acaba por deixar o leitor confuso.
Ali, o que se vê é o Estado manifestando-se na primeira pessoa; fazendo citações em inglês, alemão e latim para traduzi-las logo adiante; ali se vê o Estado misturando julgamentos pessoais – como “ilações cavilosas”, ou “miríade de construções normativas prenhes de retórica falaciosa” etc. – com argumentos objetivos; ali se vê o Estado movendo-se numa direção para chegar a destino não anunciado.
A impressão geral que causa no leitor é de que o dinheiro do contribuinte poderia ser empregado em atividade mais produtiva, que visasse a algo mais prático, como, por exemplo, a produzir algo que ajudasse o contribuinte a melhorar sua conturbada relação com o fisco, não o contrário.
A personificação do discurso do Parecer preocupa. O contribuinte pode enfurecer-se com o Estado e eventualmente se enfurece; pode acabar se exaltando em algumas circunstâncias e eventualmente se exalta mesmo; pode perder a compostura às vezes e eventualmente perde mesmo – não tanto, aliás, quanto poderia perdê-la -, mas está literalmente pagando por esse direito, e desde que não avance os limites da civilidade, nada tem a temer. Já o Estado, pelos limites impostos pelo art. 37 da CF/88, não tem o mesmo direito. A começar por não ter o direito de personalizar o discurso. O servidor público é manifestação do Estado, e, como tal, não tem emoções, não acha nada, não faz julgamentos – a menos que seja pago para isto. Ou, por outra: o contribuinte pode fazer tudo o que a lei não proíbe, mas a conduta do Estado está contida no que a lei diz que ele deve fazer. Ponto final.
Insistimos, porém: a que veio o Parecer PGFN/CAT nº 1617/2008?
Sabe-se que o problema que vinha sendo vivenciado pelos contribuintes até a edição da Súmula Vinculante nº 8 do STF, objeto do Parecer, era o termo ad quem da prescrição e decadência que foram objeto dos arts. 45 e 46 da Lei nº 8.212/91 e do parágrafo único do art. 5º do Decreto-lei nº 1.569/77, ou seja, era saber afinal até quando a previdência poderia cobrar as contribuições previdenciárias não pagas ou as diferenças das que foram pagas a menor pelo contribuinte. O CTN dizia que este prazo era de cinco anos; já os citados dispositivos esticaram-no para dez anos em favor da previdência, com o que premiava a morosidade da autarquia à custa da insegurança jurídica que trazia com o duplo critério e ampliava desmesuradamente o tempo para o Fisco tomar providências nos casos de inadimplência.
Ora, pois a solução dada pelo STF ao problema foi editar a Súmula Vinculante nº 8, em que fez constar que eram inconstitucionais – portanto, natimortos – tanto os arts. 45 e 46 da Lei nº 8.212/91 quanto o parágrafo único do art. 5º do Decreto-lei nº 1.569/77, porque estes dispositivos buliram com institutos constitucionalmente reservados a lei complementar. O que vale, portanto, é a regra da prescrição qüinquënal prevista no Código Tributário Nacional.
Desviando-se do tema central da Súmula, vê-se que o produtor do parecer faz profundas digressões acerca da necessidade de fixar corretamente os termos a quo da prescrição e decadência tributários. Mas como?, pergunta-se. Há mesmo necessidade de fixar corretamente termo a quo para a matéria? A Súmula não se referiu a termo ad quem da prescrição e da decadência, dizendo que ele é o que o CTN diz que é, ou seja, cinco anos? Enfim: uma vez editada a Súmula Vinculante nº 8, será que era mesmo necessário torrar dinheiro do contribuinte mobilizando profissionais dos quadros da PGFN para estabelecer-lhe corretamente o alcance, ou para “esclarecê-la”? Parece-nos que não.
Mas a preocupação do parecer, porém, é de outra ordem; não é o de fixar prazo inicial para prescrição ou decadência de créditos tributários, mas aproveitar-se do que diz a Súmula Vinculante nº 8 do STF para estabelecer verdades a partir do que ela não diz. Há vários pontos em que isso fica evidente, analisemos apenas o primeiro deles.
O parecer se refere, por exemplo, à obrigação criada no § 11 do art. 32 da Lei nº 8.212/91 dizendo que ela “permanece robusta”. Este dispositivo é o que obriga a empresa a manter arquivados por dez anos à disposição do Fisco os documentos comprobatórios do pagamento das contribuições previdenciárias. Segundo o parecer, sobreviveria no mundo jurídico pelo só fato de que a Súmula não o cita expressamente como inconstitucional. Os procuradores concluem, para tanto, que “o modelo brasileiro repele a inconstitucionalidade por analogia”, e que, portanto, “nada obstante tratar-se de prescrição, não se lhe aplica o conteúdo da súmula”.
O nonsense digno de Ionesco contido neste entendimento cai pela aplicação da regra elementar de que o acessório segue o principal. Uma vez que a autarquia perde em cinco anos, fulminado pela decadência, o direito de exigir do contribuinte o pagamento das contribuições previdenciárias não pagas ou pagas a menor, com que fundamentos há de exigir que ele guarde não por cinco, mas por dez anos os documentos referentes a estas obrigações? Ou, por outra: por que é que a obrigação de guardar os comprovantes de pagamento das contribuições previdenciárias sobreviveria cinco anos além do prazo máximo que a autarquia tem para verificar seu correto comprimento e exigir eventuais diferenças? Há resposta sensata a esta pergunta? Há algum sentido prático neste pensamento oficial? É óbvio que não.
É por essas e outras que pensamos que a erudição e a pompa das cerca de 7.000 palavras do parecer estão desperdiçadas, e só não são maiores do que a incrível falta de praticidade de suas conclusões. Melhor faria o Executivo, insistimos, se aplicasse os mesmos empenho e inteligência na criação de uma forma de baixar a obscena carga tributária nacional. Daí, se tempo lhe sobrar, que teça as considerações que quiser sobre os temas que bem entender.
Deveremos voltar ao assunto, pois há outros pontos no parecer que merecem análise.
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