(Este artigo foi publicado originalmente na seção Minas Gerais do Jornal Gazeta Mercantil em 24/09/2002)
O cidadão aprende cedo que deve pautar seu comportamento dentro do que a lei não proíbe; do Estado – as três esferas públicas -, ao contrário, exige-se fazer apenas o que a lei determina. Este pacto só funciona dentro do Estado de Direito, onde limites bem definidos se baseiam no princípio da legalidade, que, por sua vez, deriva do valor segurança jurídica. Neste regime, o Estado tem de ser o primeiro a cumprir as leis que edita e, para conservar sua presunção de legitimidade, têm de se originar – Estado e leis – da Constituição Federal.
Pois a nação brasileira precisa urgentemente fazer uma opção entre duas: pôr um freio no vezo estatal de se reformar continuamente por dentro em busca de mais poder à custa da diminuição das liberdades civis ou reformá-lo totalmente por fora antes que seja tarde.
A série de medidas provisórias e de emendas constitucionais que se vê nos últimos anos demonstra, de um lado, uma instabilidade jurídica a pressionar constantemente o Congresso, pondo o Chefe do Executivo como legislador-mor que leva ao paroxismo a urgência de o Estado garantir-se instrumentos fortes o bastante para continuar crescendo e, de outro, põe os contribuintes como reféns de um sistema jurídico cada vez mais precário, cujo profundo conhecimento só lhe é exigido no que beneficia o Fisco.
O brutal aumento da carga tributária sem o correspondente acréscimo de progresso e conforto é prova de que o Estado passou a se servir de seus contribuintes para outras coisas que não o bem comum. É claro o apodrecimento da infra-estrutura do País, a exemplo das estradas, saúde, educação e segurança; é clara também a involução de setores que pareciam condenados ao sucesso, como o de serviços. Em vez de arrecadar para servir a nação, o Estado se serve da nação para arrecadar. O que o Estado faz com a arrecadação “está nas folhas”, como diz Carlos Heitor Cony.
Everardo Maciel, braço da União na Secretaria da Receita Federal, veio a público dizer há pouco tempo que a reforma tributária é necessária para coibir atos dos “contribuintes mais bem informados” que conhecem “as brechas na lei” e que delas se valem para pagar menos impostos.
O Secretário não diz, mas sabe que quanto mais complexa se torna a legislação tributária, mais o contribuinte tem de conhecê-la para não ser autuado pelo Fisco e, conseqüentemente, mais conhecimento tem das alternativas legais que existem.
Até aqui, a égide da lei era a salvaguarda do contribuinte contra a espada da imposição, mas estamos prestes a voltar aos tempos em que os Códigos eram sabidos só pelos doutores e cumpriam ser cegamente obedecidos pela plebe iletrada. Na contramão da cidadania, Maciel prega o conhecimento apenas parcial da lei e o não-questionamento.
Pois a ousadia que o Estado exibe entre os artigos 13 ao 19 da minirreforma de que trata a Medida Provisória – MP nº 66, de 29/08/2002, é tão grande que a indignação quase toma o lugar do raciocínio. Estes artigos estabelecem que negócios realizados dentro da lei pelo contribuinte – portanto sem dolo, fraude ou simulação – podem ser desconsiderados a critério da autoridade administrativa da Receita.
Pasme, é isto mesmo. Para não ser autuado, o contribuinte, posto sob suspeita em processo administrativo, tem de provar que não quis fazer o que a Fazenda suspeita que tenha feito. Além de trocar a certeza da lei pela opinião dos fiscais, a MP estabelece a inversão do ônus da prova – a presunção de inocência do contribuinte deixou de existir.
A partir desta MP, as autoridades administrativas, agentes públicos treinados, pressionados pela necessidade de aumentar a arrecadação, com atenção seletiva, profundo conhecimento legal e critérios subjetivos bastante peculiares, vão decidir se o que o contribuinte fez para pagar menos impostos pode prevalecer ou não.
Pela ótica da MP, o contribuinte não pode mais optar pela forma legal que bem entender para fazer o seu negócio; além de ter de optar pela forma que faça incidir impostos, esta forma deve ser a que mais impostos exija. A MP transformou o contribuinte em sonegador até que ele – não o Fisco – prove o contrário.
O fato é que o Estado já nem se esconde mais atrás da ideologia da solidariedade social para exigir impostos. Quando um membro do primeiro escalão do Executivo sai de seus cômodos para dizer, sem o menor pudor, que quem conhece a lei é sonegador até prova em contrário, e ainda provê o ordenamento jurídico de norma para lhe dar razão, é hora de tomar uma atitude. Se esta MP for convertida em lei sem que nada mude, o Estado terá conseguido romper uma das últimas barreiras que o mantinham a uma distância segura da propriedade privada do cidadão.
Talvez o momento de pôr um guiso no pescoço do gato já tenha passado. Ele já está tripudiando.
Tel.: (31) 3658-5761
Email: bernardesefaria@bernardesefaria.com.br
Av. Prof. Mário Werneck, 1895/601
Buritis – CEP: 30455-610
Belo Horizonte (MG)