Desde sempre há uma luta surda entre o cidadão e o Estado, especialmente no que diz respeito ao cumprimento do dever básico daquele para com este, que é pagar os tributos exigidos, e deste para com aquele, que é respeitar os limites ao poder de tributar – e conseqüentemente autuar. Na zona cinzenta que se forma com a interseção dos círculos que representam os deveres e obrigações de um e outro, sombreada de um lado pelo que Estado deve permitir ao cidadão porque não é ilegal e de outro pelas escolhas que o cidadão faz por conta própria escudando-se no que a lei lhe permite, travam-se batalhas que só se resolvem na Justiça. Não é de hoje que, para definir a conduta do cidadão nessa zona cinzenta, de um lado o Estado quer mais poder, de outro o cidadão quer ou fazer prevalecer as salvaguardas que já tem, ou garantir-se outras para proteger sua propriedade.
Desde que a Lei Complementar (LC) nº 102/2001 incluiu no ordenamento jurídico o parágrafo único ao art. 116 do Código Tributário Nacional (CTN), porém, a guerra entre o fisco e o contribuinte ganhou um componente pernicioso que vem justificando uma série de abusos. Este dispositivo prevê a edição de lei ordinária que estabeleça critérios para a autoridade rever atos ou negócios realizados pelos contribuintes que, no seu entender, tenham sido praticados com intuito de pagar menos tributos do que o que seria exigível. A lei que este parágrafo único do art. 116 do CTN exige ainda não existe.
A primeira e única tentativa de regulamentá-lo ocorreu em agosto de 2002, quando o Poder Executivo enviou ao Congresso Nacional sete artigos dentro da Medida Provisória (MP) nº 66. Com eles, procurava estabelecer critérios para determinar quem e em quais circunstâncias podia fazer o que em termos tributários, quando os fiscais da Secretaria da Receita Federal (SRF) poderiam inclusive desconsiderar atos e negócios jurídicos realizados se julgasse que a forma de que se revestiam externamente era apenas uma capa para negociatas. Em outras palavras, o Governo Federal quis dar aos fiscais poderes para obrigar o cidadão, diante de opções diversas para realizar determinado negócio, a optar sempre pela forma que lhe obrigasse a recolher mais tributos.
A manobra caiu por terra. Os sete artigos, que se tornaram conhecidos como normas anti-elisivas, foram extirpados quando a MP 66/2002 foi convertida na Lei nº 10.637/2002, a que transformou o Pis em contribuição não cumulativa. Desde então, nenhuma outra tentativa de regulamentar o dispositivo do CTN foi adiante, do que decorre que os fiscais da SRF continuam sem fundamentos legais para detectar supostas elisões fiscais.
O problema é que mesmo sem os fundamentos legais exigidos pelo art. 116 do CTN os fiscais continuaram a agir – naturalmente que não por conta própria, mas segundo a cartilha da SRF – e, ainda que arbitrária, abusiva, ilegal e inconstitucionalmente, vêm desconsiderando, pontualmente, todos os atos e fatos jurídicos que, no seu entender, seriam meras manobras para pagar menos tributos.
A questão, é de rigor registrar, não se limita a mera desconsideração de atos e negócios jurídicos, mas também a levantar as suspeitas de negociata e transferir ao contribuinte, como única alternativa de defesa, o dever de provar “que não cometeu excessos”, ou “que não infringiu a lei”. Nesse raciocínio torto, que de tão repetido passa a ser tido por alguns como correto, não é o Estado que deve provar que o cidadão cometeu erros, ou que teve a clara intenção de lesar o fisco, este é que passa a ter de provar que não fez nada de errado – como se fosse possível fazer prova negativa. Em vez de o fisco provar de forma exaustiva a suposta fraude, levanta a dúvida e obriga o contribuinte a se virar para defender-se do que nem sempre é esclarecidamente posto.
Os abusos vêm se acumulando de tal forma que, já na MP nº 252/2005, conhecida como “MP do Bem”, instituiu-se a primeira “chuva no molhado”. Esta MP perdeu eficácia em 13/10/2005, mas teve os benefícios restaurados pela Lei nº 11.196/2005. Chover no molhado, neste caso, é o que faz o art. 129 da referida lei, que, num claro recado à SRF, estabelece um direito que o cidadão na verdade nunca perdeu, que é o de contratar-se sob a forma de pessoa jurídica, mesmo em caráter personalíssimo, para prestar serviços para o tomador. Um caso de negócio jurídico, pelo menos, foi eleito como parâmetro de contratação protegido do abuso dos fiscais. O problema desse tipo de “esclarecimento legal”, advirta-se, é o risco que traz embutido de ser revogado mais adiante e tornar a emenda pior que o soneto: vão dizer que o direito só passou a existir a partir da Lei nº 11.196/2005, quando isto, obviamente, não é verdade.
De nada adiantou, porém; os abusos continuam se acumulando. A solução, desta vez, sonharam os que acham que a complexidade do ordenamento jurídico-tributário do País é pequeno e comporta mais maluquices, foi instituir outra chuva no molhado sob a forma de um parágrafo acrescido ao art. 6º da Lei nº 10.593/2002, que diz que, caso haja dúvidas acerca do tipo de contrato sob análise entre prestador e tomador de serviços, quem tem a palavra final sobre o assunto é o Poder Judiciário, não o fiscal que pôs a relação contratual em dúvida. Pergunta-se: este dispositivo era mesmo necessário? Será mesmo que há dúvidas de que cabe ao Poder Judiciário se pronunciar sobre a desconsideração de atos e negócios jurídicos feita sem fundamentos legais?
Ao sancionar a Lei nº 11.457/2007, porém, o Presidente da República vetou esta inclusão do parágrafo 4º ao art. 6º da Lei nº 10.593/2002, como se concluísse que não cabe poluir ainda mais o ordenamento jurídico com dispositivos que nada mais são do que o óbvio trepado no redundante gritando o desnecessário. Fez mais: adiantou que fará ir ao Congresso Nacional projeto de lei para regulamentar aquele dispositivo referido no início deste artigo, justo o parágrafo único do art. 116 do CTN, que, velho de alguns anos, nunca recebeu do Fisco mais do que desprezo.
O Governo Federal deixou ainda mais evidente, ao agir assim, que nunca se prendeu aos grilhões estatuídos pelo CTN nem dependeu das hipotéticas chaves que deveriam ser fornecidas pelo Congresso Nacional para deixá-lo agir. Agora, a pergunta que não quer se calar é: fez alguma diferença o veto presidencial?
Respondemos que não. Não só não fez diferença alguma como ainda é a prova viva de que o governo reconhece que não há lei a regulamentar a atuação dos fiscais da SRF e, portanto, que todas as multas aplicadas até agora pela SRF são ilegais, e podem ser desconstituídas judicialmente.
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